Canal que deve ligar Atlântico e Pacífico gera polêmica na Nicarágua
Promessa de projeto chinês que não sai do papel causa protestos revoltados no país
BRITO, Nicarágua – Um explorador espanhol conduziu a primeira pesquisa para conectar os oceanos Atlântico e Pacífico no século XVI. Napoleão III da França sonhou com isso. Por pouco tempo, o magnata das ferrovias Cornelius Vanderbilt teve os direitos sobre a ideia. A história da Nicarágua tem dezenas de planos de canais que não deram certo.
Mas quando um bilionário chinês, Wang Jing, oficialmente cavou o chão em um campo desta tranquila vila na costa do Pacífico cerca de um ano atrás, muitos nicaraguenses acreditaram que dessa vez, finalmente, teriam o canal.
E não seria pequeno. Três vezes mais longo e duas vezes mais profundo do que o Canal do Panamá, cortaria quase 275 quilômetros da parte sul do país – arrasando ecossistemas frágeis, florestas virgens e cenários de beleza incrível. Ele permitiria a passagem dos maiores navios do mundo, embarcações do comprimento de arranha-céus, grandes demais para o Canal do Panamá.
No entanto, 16 meses depois, o projeto de Wang – que seria o maior movimento de terra da História – está envolto em mistério e causando protestos revoltados no país. O presidente Daniel Ortega não fala sobre o canal em público há meses. Vacas pastam no campo onde Wang lançou oficialmente o projeto.
Especialistas dizem que estão perplexos com o canal de Wang. Ele pode ter o apoio do governo chinês, como parte de seu crescente interesse na América Latina, ou ser simplesmente um investimento privado que acabou à deriva por causa das convulsões no mercado de ações da China e da desaceleração da economia.
Na época do lançamento, em dezembro de 2014, o governo Chinês disse que não estava envolvido no projeto. Esse fato e os reveses recentes de Wang – ele teria perdido cerca de 80 por cento de sua fortuna de US$10 bilhões – fazem com que alguns especialistas digam que provavelmente o negócio está morto.
Outros, no entanto, acreditam que as práticas de negócios dos chineses são tão opacas que é difícil dizer. Facilitar o movimento de bens do Pacífico para o Atlântico se alinha com os interesses da China, e o custo dificilmente é um obstáculo se o governo daquele país quisesse continuar com o projeto – se estiver envolvido.
Funcionários da empresa de Wang afirmam que está apenas levando mais tempo do que o previsto para concluir os estudos que antecedem a construção.
— É um projeto que sempre foi notoriamente pouco transparente — explica Margaret Myers, diretora do programa de China e América Latina do Diálogo Interamericano, um instituto de políticas de Washington. Ela diz que acredita que o projeto esteja provavelmente morto por falta de fundos, mas como a maioria dos especialistas, não tem certeza.
O que parece bem claro é que os críticos do projeto – ambientalistas, defensores dos direitos humanos e economistas – estão mais ativos e organizados. Nesta parte do país, muitos proprietários estamparam um “Vão embora chineses” nos muros das casas, e virtualmente todos os pôsteres pela reeleição de Ortega foram atingidos por bolas de tinta preta.
Quando anunciou o negócio em 2013, Ortega, um guerrilheiro de esquerda que se tornou um político a favor dos negócios, prometeu que o canal transformaria a Nicarágua e criaria centenas de milhares de empregos, e eventualmente dobraria o produto interno bruto do país. Vários nicaraguenses, ansiosos por um futuro melhor, abraçaram a ideia, e muitos ainda o fazem.
Mas um número crescente diz que os benefícios não estão tão claros.
Alguns questionam se o canal seria mesmo viável comercialmente. Certos superpetroleiros e enormes navios cargueiros que navegam hoje não serão capazes de passar pela expansão do Canal do Panamá prevista para abrir em breve. E poucos portos são grandes o suficiente para receber esses navios gigantes. No curto prazo, dizem alguns especialistas, a combinação do canal do Panamá e da Nicarágua levaria a um excesso de capacidade e a uma guerra de preços.
Também existem preocupações sobre abalos sísmicos na região ou por causa do grande número de vulcões. Alguns analistas lembram o registro pobre da China em questões ambientais e a inexperiência de Wang em construir qualquer coisa, quanto mais um canal de US$50 bilhões (alguns dizem US$80 bilhões), passando por quilômetros de regiões protegidas, habitat de muitas espécies em extinção, incluindo o jaguar, e reconhecidas como terras indígenas. O pouco conhecido Wang fez sua fortuna com telecomunicações e não no setor da construção.
E também há uma trincheira de 80 quilômetros a ser construída no Lago Nicarágua – o maior corpo de água doce da América Central – que, para muitos, poderia contaminar, e mesmo matar, o lago.
Economistas e ativistas dos direitos humanos também objetam contra os poderes que Wang tem para expropriar terras por preços muito menores do que os do mercado, dizendo que os termos da concessão poderiam desencorajar qualquer outra pessoa a investir na Nicarágua.
Esse aspecto fez com que os fazendeiros protestassem, alguns de forma violenta. Especialistas dizem que Wang terá que pagar apenas o valor avaliado, ou cerca de cinco por cento do valor de mercado, para qualquer terra que ocupar. Mas muitos fazendeiros não teriam direito nem mesmo isso. Em um país com poucas estradas e agências governamentais adequadas, muitos não possuem escrituras das terras que cultivam há gerações.
Juan Sebastián Chamorro, diretor geral do instituto de pesquisa Funides, que é contra o canal, diz que o acordo com Wang, aprovado apressadamente pelo parlamento e consagrado na constituição, efetivamente fez com que todos os proprietários de terra se sintam inseguros em qualquer lugar do país.
— Na teoria, se o senhor Wang quisesse tomar este prédio em que estamos agora para seu projeto, poderia fazê-lo. Quem vai querer comprar ou construir aqui com essa possibilidade pairando sobre sua cabeça? — explica Chamorro, mostrando com a mão o escritório no centro de Manágua, a capital.
Chamorro diz que a maioria dos empregos na construção não iria para os nicaraguenses e que o Panamá só se tornou próspero depois de conseguir o controle do canal. É improvável que isso aconteça por aqui nos próximos 100 anos, segundo o acordo de Wang, que pode ser vendido a uma terceira parte.
Mas o plano é muito mais amplo do que apenas um canal. A visão de Wang inclui novos aeroportos, portos nas duas pontas do canal, a construção de lagos nas montanhas, para garantir que o canal tenha água suficiente, e de ilhas no Lago Nicarágua, para colocar os sedimentos de terra escavados e as pedras.
Um estudo do projeto de 1.100 páginas feito pela empresa de consultoria britânica ERM e apresentado cinco meses atrás, reforça a noção do quanto está em jogo. O documento recomenda mais pesquisas em muitas áreas antes de continuar com o projeto e afirma que uma grande quantidade de esforços de compensação seria necessária, como reflorestamento e treinamento de pessoal.
Alguns veem esperança nesses esforços. Jeffrey McCrary, biólogo de peixes dos Estados Unidos que mora na Nicarágua e trabalhou no estudo, apoia o projeto, dizendo que a empresa de Wang terá que dar dinheiro para resolver os danos ambientais já causados pelo desmatamento, má gestão da terra, aplicação de agrotóxicos e despejos gerais no Lago Nicarágua.
— Eu vi aquele lago e está em um estado deplorável. Vamos matar muitos peixes para construir o canal? Sim, vamos. Mas sem o canal acho que estamos condenados.
Respondendo a perguntas feitas por escrito, Pang Kwok Wai, vice-presidente executivo da empresa de Wang, a Hong Kong Nicaragua Canal Development Investment Co., disse que Wang estava conversando com potenciais investidores e anunciaria seus progressos da maneira devida. Ele contou que Wang já investiu cerca de US$500 milhões do próprio bolso.
Pang também explicou que a empresa, embora não seja obrigada, pagaria os preços do mercado para as terras que quiser ocupar. “Estamos na Nicarágua para trazer progresso e jogar de maneira limpa”, afirmou.
Enquanto isso, especular sobre o canal se tornou um grande passatempo nacional, embora as pesquisas mostrem que os nicaraguenses estão cada vez menos inclinados a acreditar que ele será construído.
“Costumávamos falar sobre ele todos os dias. Agora só falamos a cada dois dias”, afirma Carlos Fernando Chamorro, editor da revista investigativa Confidencial.
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